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Definhamento cíclico, um conto.

Era um corredor comprido e imaculadamente limpo, um arrepio lhe percorria a espinha ao pensar em cruzá-lo sob a luz parca da lua que inundava pelas claraboias transparentes. A cada passo que dava rumo à pesada porta de carvalho esculpido, era como se o chão se movesse, e as coisas de repente rodassem ao seu redor. O que estava acontecendo? Pôs os dedos nas têmporas, esfregando, tentando conter a dor inexistente e obrigou-se a dar mais um passo, apenas para escutar sussurros ininteligíveis. Quem estava falando? De quem eram as vozes? Por que ela sentia-se tão estranhamente familiar ali?

Uma risada. Uma gota de suor gelo escorrendo pelo canto da testa.

- Alguém? - Murmurou.
O corredor começou a encher-se de sombras na medida em que uma nuvem cobria o luar, ficaria escuro, ela não podia ficar no escuro, precisava manter-se sob a luz. Não sabia de onde havia surgido a sensação de pânico e certeza, mas seguiu-a, correndo até o único feixe iluminado, um pequeno castiçal alguns metros da porta. Por que deveria cruzá-la? Por que suas pernas pareciam mármore ao pensar em dar as costas e achar uma saída?
 
BAM!

Num estremecimento, acordou com o ruído de uma porta que se fechava pesadamente lá embaixo, no térreo. Sentou-se na cama, as cobertas escorregando em direção chão. Abraçou os joelhos, orou, limpou o suor da testa e pestanejou até que seus olhos acostumassem-se a escuridão. Tentou lembrar-se do sonho, era estranho; sua boca ficara amarga e os pelos eriçados. Mas o que havia acontecido?

Lembrou-se da porta.

O coração acelerou e levantando-se, pôs um robe sobre o velho pijama. Por que a porta bateria como se alguém estivesse saindo ou entrando? Olhou no relógio, três da manhã. Horário estranho. Esfregou o rosto, tomando coragem. Abriu a porta a tempo de ver um farfalhar de cabelos não identificáveis, descendo a escada sorrateiramente. Franziu o cenho e o seguiu.

Um grito. Correu.

O corredor era comprido e imaculadamente limpo... A cabeça girou, os olhos doeram e as pernas ameaçaram ceder sob o peso. Conteve a respiração, andando lentamente, o rosto fixo na porta de carvalho. Era da sala.

Movimento. Parou.

Das sombras emergiu a figura, era corpulenta, entretanto de suave. Os cabelos ralos, os olhos pequenas fendas enegrecidas, brilhantes de fanatismo. Também olhava para a porta e caminhava em direção a ela, sempre pelos cantos escuros. Um breve momento, sob a luz das velas, um reflexo metálico, uma faca. A maçaneta girou e ele esgueirou-se para o interior.

Pânico.

Ela voltou a correr. Escutou uma risada, vozes, sussurros; ficou sem ar, levou as mãos ao pescoço e caiu contra a porta. Estatelou-se no chão, o pulso pareceu quebrado, uma dor lancinante lhe tomou o estômago e seus olhos ficaram escuros, desfocados. Olhou para cima, um grito de horror ficou preso na garganta. Ela estava sangrando.

Ela estava morrendo.

De novo. E de novo.

Dor. Dor. Dor.

O homem levantou-se, jogando um corpo ao chão. A blusa ensanguentada, a faca em mãos.
- Para sempre minha. – Disse, olhando para além ela, que também estava de pé. Mas ela não havia morrido? O que estava acontecendo? Perguntou-se e então viu o rosto, pálido e sem vida do corpo.

 Era seu.

Arregalou os olhos, caiu de joelhos e chorou lágrimas peroladas. Assustou-se, o homem se moveu novamente, em sua direção. Confusa, escondeu o rosto, algo tremeluziu, e então ele não estava mais ali. Ouviu um gemido, um arfar.

Amargura.

Virou-se com as mãos contra o ventre manchado de sangue, mas sem feridas, e observou o homem cair ao chão. A garganta rasgada.

Morte.

Uma luz forte, frio, esquecimento. A cena desapareceu, negrume, palidez, inconsciência.

Paz.
(...)
Era um corredor comprido e imaculadamente limpo...



Texto escrito para o Projeto Bloínquês
27ª Edição conto/história:  "acordou com o ruído de uma porta que se fechava pesadamente lá embaixo, no térreo."

Espero que gostem!


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